As Contrariedade do Homem pelo Pecado Original

O Homem e suas Contrariedades



As grandezas e as misérias do homem são de tal modo visíveis que é preciso, necessariamente, que a verdadeira religião nos ensine e que haja no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria. É preciso, pois, que ela nos explique essas espantosas contrariedades. Se há um só princípio de tudo, um único fim de tudo: tudo por ele, tudo para ele. É preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a não adorar senão a ele e a não amar senão a ele. Mas, como nos achamos na impossibilidade de adorar o que não conhecemos e de amar outra coisa além de nós, é preciso que a religião, que instrui sobre esses deveres, nos instrua também sobre essas impossibilidades, ensinando-nos também os remédios. É preciso que, para tornar o homem feliz, ela lhe mostre que há um Deus; que se é obrigado a amá-lo; que a nossa verdadeira felicidade é estar nele, e o nosso único mal estar separado dele; que reconheça que estamos cheios de trevas que nos impedem de conhecêlo e de amá-lo; e que, assim, obrigando-nos os nossos deveres a amar a Deus, e as nossas concupiscências a desviar-nos dele, estamos cheios de injustiça. 

É preciso que nos dê satisfação dessas nossas oposições em relação a Deus e ao nosso próprio bem; é preciso que nos ensine os remédios para essas impossibilidades e os meios de obter esses remédios. Examinem-se sobre isso todas as religiões do mundo, e veja-se se há alguma que o satisfaça como a cristã. 

Serão os filósofos, que nos propõem, como todo bem, os bens que estão em nós? Será esse o verdadeiro bem? Descobriram eles o remédio para os nossos males? Será curar a presunção do homem igualá-lo a Deus? Os que nos igualaram às feras, e os maometanos, que nos deram como todo bem os prazeres da terra, até mesmo na eternidade, trouxeram, o remédio para as nossas concupiscências? Levantai vossos olhos para Deus, dizem uns; olhai para aquele ao qual vos assemelhais e que vos fez para adorá-lo; podeis tornar-vos semelhante a ele; a sabedoria vos igualará a ele, se quiserdes segui-lo. Dizem outros: Baixai vossos olhos para a terra, mísero verme que sois, e olhai para as feras, das quais sois o companheiro. 

Que se tornará, pois, o homem? Será ele igual a Deus ou aos animais? Que espantosa distância! Que seremos, pois? Quem não vê, por tudo isso, que o homem está afastado, que caiu do seu lugar, que o procura com inquietude, que não pode mais tornar a encontrá-lo? E quem, então, tornará a pô-lo de pé? Os maiores homens não o conseguiram. Que religião, pois, nos ensinará a curar o orgulho e a concupiscência? Que religião, enfim, nos ensinará o nosso bem, os nossos deveres, as fraquezas que nos desviam, a causa dessas fraquezas, os remédios que podem curá-las e o meio de obter esses remédios? Todas as outras religiões não o conseguiram. Vejamos o que fará a Sabedoria de Deus, (que nos fala na religião cristã):

É em vão, oh homens, que procurais em vós mesmos o remédio para as vossas misérias. Todas as vossas luzes só podem chegar a conhecer que não é em vós mesmos que descobrireis a verdade e o bem. Os filósofos o prometeram, mas não puderam fazê-lo. Eles não sabem nem qual é o vosso verdadeiro bem, nem qual é o vosso verdadeiro estado. Como poderiam dar remédio aos vossos males, se nem ao menos o conheceram? Vossas enfermidades principais são o orgulho, que vos subtrai de Deus, a concupiscência, que vos liga à terra, e eles não fizeram outra coisa senão entreter ao menos uma dessas enfermidades. Se vos deram Deus por objeto, foi apenas para exercer vossa soberba. Fizeram-vos pensar que lhe sois semelhantes e conformes por vossa natureza. E os que viram a vaidade dessa pretensão vos lançaram no outro precipício, fazendo-vos entender que vossa natureza é semelhante à dos animais, e vos levaram a procurar o vosso bem nas concupiscências, que são a partilha dos animais. Não é esse o meio de vos curar de vossas injustiças, que esses juizes não conheceram. Não espereis, diz ela, nem a verdade nem a consolação dos homens. Eu sou aquela que vos formou e, em seguida, a única que vos ensina o que sois. Mas, não estais, agora, no estado em que vos formei. Criei o homem santo, inocente, perfeito; enchi-o de luz e de inteligência; comuniquei-lhe minha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem viam, então, a majestade de Deus. Ele não se achava nas trevas que o cegam, nem na mortalidade e nas misérias que o afligem. Mas, não pode sustentar tanta glória sem cair na presunção. Quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu socorro. Subtraiu-se ao meu domínio; igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a sua felicidade em si mesmo, abandonei-o; revoltando as criaturas que lhe estavam submetidas, tornei-as suas inimigas: de maneira que, hoje, o homem se tornou semelhante aos animais, e num tal afastamento de mim que apenas lhe resta uma luz confusa do seu autor, de tal forma se extinguiram ou perturbaram todos os seus conhecimentos! Os sentidos independentes da razão, e muitas vezes senhores da razão, levaram-no à procura dos prazeres. Todas as criaturas o afligem ou o tentam; e dominam sobre ele, ou submetendo-o pela força, ou encantando-o com suas doçuras: o que é um domínio mais terrível e mais imperioso. 

Eis o estado em que os homens estão hoje. Resta-lhes algum instinto poderoso da felicidade de sua primeira natureza, e eles estão mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que se tornou sua segunda natureza. 

Por esse princípio que vos revelo, podeis reconhecer a causa de tantas contrariedades que assombraram todos os homens e que os dividiram em sentimentos tão diversos. Observai, agora, todos os movimentos de grandeza e de glória que a experiência de tantas misérias não pode refrear, e vede se não é preciso que a causa disto esteja em outra natureza.  

Coisa assombrosa, no entanto, que o mistério mais distanciado do nosso conhecimento, que é o da transmissão do pecado original, seja uma coisa sem a qual não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos! Sem dúvida, não há nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tornou culpáveis os que, estando tão afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar dele. Essa emanação não nos parece somente impossível, mas nos parece até injustíssima: com efeito, que há de mais contrário às regras da nossa miserável justiça do que danar eternamente uma criança incapaz de vontade por um pecado em que parece ter tido tão pouca parte, que cometeu seis mil anos antes de sua existência? Certamente, nada nos choca mais rudemente do que essa doutrina; no entanto, sem esse mistério, que é o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O nó da nossa condição toma suas voltas e pregas nesse abismo. De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério inconcebível ao homem. 

O pecado original é uma loucura diante dos homens; mas, é dado como tal. Não deveis, pois, censurar de falta de razão essa doutrina, uma vez que a dou como não tendo razão. Mas, essa loucura é mais sábia do que toda a sabedoria dos homens: Quod stultum est Dei, sapientius est hominibus (8) (I Coríntios, 1, 25). Com efeito, sem isso, que se dirá que é o homem? Todo o seu estado depende desse ponto imperceptível. E como se apercebeu disso, de vez que é uma coisa acima de sua razão, e que sua razão, bem longe de inventar por suas vias, afasta-se quando ela se lhe apresenta?

Autor: Blaise Pascal
Trecho Retirado do Livro ''Pensamentos''
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Autor: Jorge A. Ferreira

Presbítero da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, Bacharel em Teologia, Articulista da Revista (O Cristão Erudito), Diretor e Palestrante do Seminário À Luz da Bíblia e Professor de Teologia.

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